sábado, 14 de março de 2009

Os foscos e os toscos

“O Feio dominando múltiplas “aparições”, diversificados fenómenos;
retratos vivos dum real feito de sombras e de medos!”
Luis Calheiros

Uma vez, na beira do grande rio de João Cabral, um dos dois rios que atravessam o Recife, cidade roxa como uma nódoa negra num corpo macerado, vi milhares de caranguejos que desesperadamente pareciam lutar pela vida. Eram uns seres desamparados entre três elementos, atascados num mundo onde não se descobria misericórdia. Pensei: somos nós, depois tranquilizei-me: são personagens de Gogol.
As suas personagens são como os caranguejos das margens do Capiberibe que esbracejam, se afundam em buracos de lodo, voltam à superfície e com as suas patitas disformes e assimétricas parecem pedir socorro. Tão toscos, tão foscos. E fogem, fogem não se sabe de quê. As personagens de Gogol são tão humanas como os caranguejos do Capiberibe.

Doutra vez, fui a um pequeno concelho em Trás-os-Montes onde um cacique pastoreava uns escassos milhares de almas, dóceis. Pareciam-me sofridas. Ele era dono da Câmara Municipal, reeleito sucessivamente, e dono do cinema e da gasolineira e da estalagem. Fazia o pleno. As casas, feiíssimas afogavam a beleza das serras, do Douro, de tudo. Não havia “um instantinho de beleza”. Viviam todos da tensão interna dos seus favores e desfavores, dos seus medos, afogados no seu gritante anonimato, na pequenez do seu degrau partido. E liam as revistas, e imitavam as revistas e declinavam a sua vida na vida das revistas, como se as revistas fossem a sua vida. E eu pensei: são personagens de Gogol.
Agora vamos supor que a essa vilória “russa” de Atrás-dos-Montes chega a notícia da vinda oficial de um Inspector do governo. E o pânico gera o pesadelo e não admite a espera. A ordem confunde-se. A culpa altera o tamanho das coisas. O diabo impera e ofusca as evidências. O aventureiro de passagem é tomado por quem não é e transforma-se em anjo exterminador. Fiscal de tudo e de todos. A realidade muda de dimensão.

Durante quase duzentos anos debateram-se opiniões sobre esta obra de Gogol. Estamos diante de uma sátira de costumes disse-se. De uma obra política? Outros defenderam “é uma obra de dimensão metafísica”, uma obra moral, um exercício de fantástico e de absurdo onde o sonho, o medo e o remorso dominam.
Felizmente vivemos um tempo que entrelaçou Brecht com Stanislasvki e Marx com Freud. Estamos livres para olhar para este impostor, estrangeiro, diabo, nada, com a liberdade de não querermos saber o que foi ele para Gogol, mas o que pode ser para nós hoje.
Para mim, se querem saber, estamos diante de tudo isso e de um escritor/artista a jogar às escondidas com o seu pânico. Mas sobretudo estamos num Baile de Máscaras onde ninguém é quem mostra ou, sequer, quem julga ser. No coração das trevas, lá mesmo onde o teatro acendeu uma luz.
Pobre, genial Gogol a tentar rir entre a agonia e o terror, estatelado num mundo em que o seu Deus o deixou cair. E a despedir-se entre os rigores do jejum que se impôs e o grotesco das sanguessugas com que lhe crivaram o nariz. O seu disforme nariz que lhe foi toda a vida fonte de inspiração e de vergonha.

Entre sim e não, apesar do nosso agnosticismo, e sem saber dele, lá lhe demos oito escadas. Só em cena.
Fora aquelas que, naturalmente, temos que subir para chegar até ao palco.
Uma obra que permite a actores e directores a realização de grandes trabalhos e ao público um arraial de gargalhada.

Maria do Céu Guerra

P.S. Este Inspector não é da ASAE…

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